Por Pascal Reuillard
Psicólogo Psicoterapeuta, membro do Grupo de Estudos Psicanálise Vincular do Instituto Cyro Martins. Artigo apresentado na Jornada Casais em Turbulência: da idealização à violência, promovida pelo núcleo de vínculos da sociedade brasileira de psicanálise de Porto Alegre.
Cada encontro tem um sentido específico e único e, apesar de todos os esforços de um sujeito para se fazer entender, é sempre o ouvinte quem decide o sentido final daquilo que ele acaba de ouvir. Disso resultam entendimentos que jamais são totalmente entendidos e ilusões de compreensões. Porém, como somos fundamentalmente seres incompletos, os atos comunicativos têm a vantagem de contribuir para nossa busca permanente por elementos ausentes.
Primeiras linhas de uma nova história
Antes da concepção, já existem três tipos de representações de crianças: 1/a criança imaginária, aquela que os pais imaginam. 2/ a criança fantasmática, no inconsciente. 3/ a criança narcísica, que terá a dura tarefa de reparar tudo, fazer tudo o que seus pais não conseguiram fazer antes dela.
Será que “essas crianças” chegam a se “falar”, a se encontrar na história transgeracional que se tornará a sua? Será que conseguem ignorar os eventuais mal-entendidos que circularam em torno delas?
Essas representações são necessárias aos pais para permitir que reconheçam e façam reconhecer sua parentalidade e, à criança, para se tornar um sujeito ativo da cadeia de gerações. No entanto, assim como seus pais, ela terá de lidar com as transmissões positivas e negativas para escrever seu próprio discurso, será depositária do recalque, do impensável familiar, dos encontros e desencontros de sua linhagem genealógica para, por sua vez, poder aceitar inconscientemente o mal-entendido que constitui toda comunicação com outro.
Os primeiros vínculos
Uma vez passados os primeiros meses de vida no ventre da mãe, o bebê se vê na obrigação de se livrar do cordão umbilical para fazer sua entrada no mundo, instalar-se no vínculo social para ouvir o ambiente lhe narrar uma história, com tudo o que isso implica de mal-entendidos passíveis de serem incorporados na fala. O corte do cordão umbilical é um dos primeiros grandes paradoxos com o qual o recém-nascido é confrontado: ele deve se separar “fisicamente” daquela que o mantinha vivo para, por fim, encontrar-se em uma situação de dependência absoluta em relação a essa mesma pessoa. Ele vive sua primeira ilusão, a de que o seio da mãe é uma parte de si; é o caso também do rosto da mãe, no qual ele se vê. Já a mãe também participa desse mal-entendido porque, ao olhar para o bebê, ela se vê a si mesma, vê aquilo que a torna mãe.
Assim, o ser em desenvolvimento deve passar por desilusões, paradoxos e mal-entendidos antes mesmo de poder estabelecer vínculos intersubjetivos e começar a construir outros cordões umbilicais com seu meio.
O mal-entendido é constitutivo?
Sabemos que qualquer interação comunicativa nunca é simples. Temos duas mentes envolvidas em uma interação desejante e desejada, que alimentam a ilusão que o outro vai compreender.
Nessa dança entre dois sujeitos de um diálogo, a concordância nunca é total, pois cada um conhecerá somente o que o outro deseja lhe mostrar – e esse outro é construído, em parte, pelos sentidos e valores que são projetados nele. Aquele que fala está, de certa forma, submetido ao poder do outro, pois aquele que escuta decide o sentido do que é dito. Consequentemente, estar de acordo não significa necessariamente se entender.
Mas então toda comunicação está condenada ao fracasso?
Sim, se pensarmos que não existe diálogo no sentido estrito, mas um amontoado de monólogos em que cada pessoa compõe seu próprio arranjo de palavras e inventa sua língua sem considerar o outro.
Não, se pensarmos que a presença do outro e aquilo que ele nos transmite oralmente são aspectos indispensáveis do processo de identificação. Prova disso é que basta lembrar as relações primárias entre o bebê e o adulto, quando aquele que “domina” a linguagem imprime marcas inconscientes e maneiras de ser no sujeito em desenvolvimento.
Evidentemente, a identificação não pode impedir que algo do outro resista, algo estranho, inerente à presença do outro. Os sujeitos de um diálogo não podem incorporar o que é da ordem do estranho de cada um. Porém, talvez aí resida a importância da comunicação: uma busca permanente por elementos que faltam.
No casal de pais, como em todo casal, existe uma dupla falta: a primeira é a falta que constitui todo ser humano e que leva a buscar no outro o que lhe foi “tomado”, isto é, o conforto do seio materno – o protótipo de toda relação amorosa. “Amar é dar aquilo que não se tem”, dizia Lacan. Oferecer algo que não possuímos é aceitar inconscientemente reconhecer-se como incompleto. A segunda falta é o fato de um sujeito jamais conseguir conhecer verdadeiramente seu parceiro ou sua parceira.
O mal-entendido que faz mal
Já vimos que não se entender totalmente é uma espécie de necessidade intrínseca para preservar aquilo que nos constitui. Existe uma diferença entre o que entendemos do outro e o que fazemos com isso. O diálogo entre dois seres falantes é o que permite o vínculo social e, portanto, a relação com o outro. Porém, o que acontece quando a mensagem enviada já for tão sintomática que o locutor vira intérprete de um não sentido e o integra a seu monólogo interior?
Numa relação tóxica com os pais, a criança é intérprete de uma mensagem oscilando entre dois polos que poderiam ser escritos da seguinte forma: “Você precisa ser mais independente, mais adulto” e “sou o adulto, eu que mando e sou eu que tenho razão”. O duplo vínculo está em jogo, isto é, uma comunicação paradoxal composta por mensagens obrigatórias, atreladas e, no entanto, contrárias. E a situação fica ainda mais complexo quando ambos (os pais) estão em um monólogo intrapsíquico que parasita o diálogo entre eles. Pode acontecer que um fala sem que o outro escute ou para que o outro não escute. Nessa lógica narcísica, eles escutam a si mesmos acreditando escutar o outro.
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